Até os 3 anos, o pequeno Heitor era uma daquelas crianças que não dava o menor trabalho para os pais Naíla e Alessandro na hora da comida. Sempre comeu legumes e verduras sem fazer cara feia. Mas teve o dia em que o menino recusou uma sopa, dizendo que ela estava “envenenada”. Heitor tinha ouvido a mãe comentar que não fazia a menor ideia da procedência dos alimentos que encontramos com tanta facilidade nos supermercados. Um “veneno”, disse ela. Palavra forte o bastante para que a criança dispensasse a comida e os pais se dessem conta da necessidade de escapar das armadilhas dos agrotóxicos.

Heitor tem agora 6 anos (o dobro da idade do irmãozinho, Gael) e viu os pais em ritmo frenético nos dias que antecederam a inauguração do primeiro supermercado 100% orgânico e sustentável da cidade de São Paulo. Diante da dificuldade de encontrar os produtos orgânicos pelas vias normais, o casal Naíla e Alessandro Duarte resolveu que iria facilitar o encontro das pessoas com esse mercado. Um passo ousado para ele, arquiteto de 35 anos, e para ela, fotógrafa e produtora de vídeos de 31.

“Ele foi a uma reunião do Sebrae e decidiu que abriríamos um estabelecimento só de produtos orgânicos”, recorda Naíla. Casados há 10 anos e juntos há 17, os agora empresários nasceram em Itapira (SP), a 162 quilômetros de São Paulo, e dedicaram praticamente dois anos ao plano de negócios. A inauguração oficial (a casa já está aberta desde 11 de março em sistema de soft openning) aconteceu esta manhã. O casal calcula que investiu 200 mil reais para abrir as portas da Casa Orgânica, no número 346 da Rua Fidalga, na Vila Madalena, reduto boêmio na zona oeste da cidade. Nas previsões mais pessimistas, eles calculam um prazo de um a dois anos para obter o retorno desse investimento.

Naíla e Alessandro Duarte: passo ousado com a “Casa Orgânica”

A escolha da Vila Madalena não foi por acaso: “Fizemos muitas pesquisas e descobrimos que o público-alvo está nessa região”, conta Alessandro. Naíla completa: “Pensamos em algo cultural para que a pessoa sentasse aqui, comesse, participasse de workshops… E esse é o lugar ideal para isso”. Difícil mesmo foi desbravar o bairro por um ano até encontrar um local grande como o galpão de 500 metros quadrados onde o estabelecimento foi erguido: “Passávamos aqui e estava tudo fechado. Não dava para ter ideia do tamanho. Até que ligamos e no mesmo dia fizemos a visita. Quando vimos a entrada natural de iluminação e ventilação, percebemos que casava muito bem com a nossa proposta”, conta ela. A Vila Madalena já teve uma proposta muito parecida, mas bem mais modesta. O Quintal dos Orgânicos funcionou entre 2010 e 2012. Há outros espaços que oferecem orgânicos na cidade, mas nada tão grandioso e com tantas variedades.

A fachada da Casa Orgânica, na Vila Madalena

A princípio, o nome seria apenas “Orgânica”, mas a empolgação com o aspecto cultural foi tão grande que houve uma adaptação: “Queremos que as pessoas se sintam em casa”, resume Naíla. Para isso, a Casa Orgânica investe na acessibilidade com corredores largos e em um Espaço Kids com brinquedos educativos que tranquilizem os pais durante as compras. No radar, também estão novidades como leitura em braile para os preços e produtos e um QR Code, que permite que o cliente saiba exatamente a procedência de cada item. A Casa abre as portas com mais de 1 mil opções de produtos orgânicos, mas a meta é chegar a 4 mil o mais rápido possível.

Produtos recebem legendas para facilitar a compreensão dos clientes

A alimentação é importante, mas dividirá espaço com produtos como coletores menstruais e absorventes que se decompõem com facilidade. Uma linha de utilidades para que as pessoas encontrem tudo o que precisam sem precisar sair do local. Nem eles mesmos poderiam imaginar a variedade de cosméticos, sabonetes e até produtos para cachorros que o mercado orgânico oferece. Já entre os produtos para seres humanos, o que mais intriga é o refrigerante orgânico de cola. “Para ser bem sincero, esse eu ainda quero entender também”, admite Alessandro. “Mas temos uma confiança muito grande porque há um certificado rigoroso em todos os produtos. Se vem com o selo, temos certeza que é de qualidade”, adverte.

Refrigerante orgânico de cola intrigou os donos

O calcanhar de Aquiles segue sendo o preço: “As coisas já chegam muito caras”, lamenta Alessandro. “Os impostos são altos e muitos pequenos produtores não têm infraestrutura de frete ou de suporte contra adversidades climáticas”, explica ele. Além disso, a produção é complicada. “Só para começar a terra precisa ficar descansando por cinco anos”, justifica Naíla. “Depois, o que os agrotóxicos produzem em 20 dias, os orgânicos fazem em três meses. Ou seja, o custo com salário é muito maior. Além disso, é preciso muito mais espaço pois deve haver uma barreira vegetal sem que nada seja plantado para que não haja contaminação”.

O casal também resolveu caprichar no visual. Toda a construção traz um design moderno, criativo e feito somente com produtos reutilizados. “Não teria sentido trabalhar com sustentabilidade sem que o negócio seja sustentável”, aponta Naíla. Caixotes de madeira, por exemplo, foram 500. Eles estão espalhados por toda a parte: “Na semana em que contrataríamos o marceneiro, fomos a uma feira de artesanato e vimos um dos expositores destruindo esses caixotes. Ele tinha uns 3 mil. Perguntamos se não queria vender e ele topou”, vibra.

Para fugir do clichê do verde como cor de estabelecimento orgânico, eles optaram pelo azul-ciano: “É moderno e chama atenção”, explica ela. No hall de entrada, uma parede pergunta “orgânico, por quê?”. As respostas vêm espalhadas logo abaixo: são 11 os motivos listados. Ao lado dos carrinhos existe um espaço para as bicicletas e na entrada um outro para deixar os cachorros. Um banco de madeira pode servir de descanso e também como oportunidade para ler exemplares de “Os anões”, de Verônica Stigger, ou “A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade”, de Flávia Camargo Toni.

11 motivos para tentar convencer a clientela a aderir os produtos orgânicos

Nesse espaço, também haverá sempre a exposição de trabalhos artísticos. Nesse momento, por exemplo, adereçam a entrada uma exposição fotográfica do coletivo “Urbans”, chamada “Horinhas de descuido”, e instrumentos orientais. A outra grande novidade é que serão 10 quiosques com produtos dos mais variados e absolutamente livres de qualquer processo artificial. Cinco já estão ocupados: as lojas de roupas (todas feitas com algodão orgânico) Manifesto Orgânico e Bambusa (esta especializada em roupas íntimas), a sorveteria La Naturelle, a Bamps e suas maquiagens naturais, e o projeto “Flores para os Refugiados”. As outras devem ser preenchidas por uma padaria, uma cervejaria, um restaurante, uma esmalteria e por um espaço conceitual com mini-hortas.

Kety Shepazian e a filha Gabriela tinham uma pequena loja de flores. Começaram a acolher e ajudar refugiados: “Minha filha está nesse momento em Belgrado (capital da Sérvia) cuidando de mil refugiados”, orgulha-se Kety. Agora, elas estarão de segunda a sábado na Casa Orgânica vendendo arranjos colocados em garrafas de vidro personalizadas (R$ 30). “Temos muitos parceiros. As pessoas deixam de jogar as garrafas nos lixo e nos dão. É das vendas dessas garrafas que sai o dinheiro para ajudar”, resume. Foi Naíla quem encontrou o projeto em uma exposição e sentenciou: vocês vêm para cá com a gente.

Kety e as “flores para os refugiados”

A proposta dos quiosques faz parte de uma ideia de economia sustentável. Em resumo: não será cobrado nenhum aluguel e as empresas contribuem apenas com uma participação nos lucros. “Essas empresas já têm seus clientes e também vão nos ajudar a crescer”, festeja Alessandro. A Casa Orgânica abriu as portas com dois funcionários (sem contar os funcionários dos quiosques) e uma programação especial com tira-dúvidas, apresentações musicais, conversas sobre alimentação consciente, fotografia de rua e workshops. Tudo 100% gratuito. A ideia é que eventos como esse sejam frequentes, mas cobrados “a um preço justo”.

Casa Orgânica
Rua Fidalga, 346, Vila Madalena
Tel.: 3813-0800
Segunda a sexta, 11h/19h; sábados, 9h/15h.

(Com reportagem e fotos de Leonardo Dahi)