O céu está cinza aqui pelos lados de Pinheiros e a meteorologia diz que teremos chuva no final desta tarde.  Não é novidade. Chuva forte no verão de São Paulo é sinônimo de enchentes, alagamentos e transtornos. Basta lembrar o que aconteceu na cidade no domingo passado. Só que essas enchentes não são tão novas assim. O recorde de pior enchente da história paulistana aconteceu em 1929. Foi tão marcante que até hoje uma chapa de bronze está cravada em uma calçada na Rua Porto Seguro, a 400 metros do Rio Tietê, para mostrar até onde a água chegou.

São Paulo enfrentava um verão complicado naquele 1929. As manchetes sobre enchentes eram quase diárias nos jornais da época. No dia 17 de janeiro, por exemplo, a Folha da Manhã (atual Folha de S. Paulo) estampou na capa uma charge com um violeiro ilhado em uma enchente tocando violão dentro de uma canoa: “Nesta Veneza manquée / Eu, bancando o veneziano / Imploro ao céu que me dê / Dez mil enchentes por anno / Mil enchentes cada mez / São mais que um deslumbrante / Pois resolvem de uma vez / A questão do calçamento / E outras coisas excelentes / Não me digam: ora, vae-te / Mas lembrem-se que as enchentes / Também nos livram da Light”.

A Light era a empresa de energia da época e estava envolvida em uma polêmica: a empresa havia aberto as comportas dos rios e parte da imprensa, em especial a Folha da Manhã, acusava a empresa canadense de ter feito isso de maneira deliberada. É que havia um acordo com a Prefeitura de que a companhia teria direito a desapropriar áreas inundadas ou que estivessem sujeitas a alagamentos. “A Light não escondeu que as comportas foram abertas, mas o objetivo, segundo argumentou, não era o de ampliar o efeito da enchente, mas, ao contrário, o de diminuí-lo. Se não o tivesse feito, as represas transbordariam, e aí sim as águas correriam com potência muito mais devastadora sobre a cidade”, escreveu o jornalista Roberto Pompeu de Toledo no livro “A Capital da Vertigem: Uma História de São Paulo de 1900 a 1954”.

Em 18 de janeiro, dia seguinte à charge, porém, as notícias já eram mais sérias: “S. Paulo sob o tormento de um verdadeiro dilúvio: casas que desmoronam, bairros alagados, bombeiros em acção”, manchetou a mesma Folha da Manhã. As chuvas causavam transtornos grandes no transporte público da cidade e encheram as ruas de lama, mas ainda não haviam provocado vítimas fatais. No dia 21 de janeiro, o  tradicional Clube Esperia fechou as portas para todos os sócios em função das cheias do Rio Tietê que inundaram as instalações do local.

As fortes chuvas provocaram enchentes e mortes no interior do Estado, mas tendiam a dar uma trégua segundo as previsões do fim de janeiro. No dia 30, porém, vieram as quatro primeiras vítimas fatais na Villa Anastácio. A triste ironia, segundo aponta o livro de Roberto Pompeu de Toledo, é que quatro anos antes a cidade havia enfrentado uma terrível estiagem.

A enchente que entrou para a história veio apenas alguns dias mais tarde, no dia 18 de fevereiro. O Rio Tietê chegou a 3,45 metros acima do nível normal. Casa Verde, Canindé, Ponte Pequena, Barra Funda, Lapa, Villa Maria e Vila Anastácio foram alguns dos bairros mais devastados pelo temporal. Como boa parte dos moradores já havia se retirado do local (foram centenas de famílias abandonando suas residências), não havia, pelo menos até aquela data, registro de mortes.

Os dias seguintes foram absolutamente caóticos. Na Freguesia do Ó e no Bairro do Limão, os moradores precisaram de barcos oferecidos pela Prefeitura para serem transportados até suas casas – algumas delas estavam quase que completamente submersas. Os desabrigados eram levados para a Hospedaria dos Imigrantes enquanto a situação não se resolvia. Golpe do destino ou fato relacionado à polêmica decisão da companhia, a histórica enchente ajudou a Light: em 1937 se decidiu que a medição das áreas sujeitas a alagamentos não seriam mais a “linha média” das enchentes, como previa o código das águas, mas sim a “linha da enchente máxima”, aumentando assim a área de desapropriação a qual tinha direito a Light. “Seja por obra da natureza, seja pela ajudinha que lhe teria proporcionado, a Light acabou ganhando com as ocorrências daquele ano”, concluiu Roberto Pompeu de Toledo.