Como tantos outros imigrantes portugueses, José Maria Godinho desembarcou na capital paulista em 1897, com apenas 14 anos, atrás de uma vida melhor. Veio sozinho. Depois de trabalhar por 20 anos no Porto de Santos, ele juntou dinheiro para comprar em 1917 uma quitanda no número 36 da Praça de Sé. Sob nova direção, a quitanda, que já existia desde 1888, seria rebatizada de Casa Godinho. Na fachada, o estabelecimento oferecia “molhados finos”. O agora empório foi transferido em 1924 para a Rua Libero Badaró, 340, onde funciona até hoje. Está encravado no Edifício Sampaio Moreira, considerado o primeiro arranha-céu de São Paulo (12 andares e 50 metros de altura). A Casa Godinho teve seu auge nos anos 1930, quando passou a atender a colônia alemã de Higienópolis. Nas redondezas, José Maria Godinho era visto como um homem endinheirado, morava num local nobre (perto da Avenida Paulista) e tinha um automóvel. “Era um imigrante que se deu bem”, nas palavras de um de seus netos, que recebeu o mesmo nome do avô.

Mercearia Godinho no início dos anos 1920, ainda na Praça da Sé. (Fonte: Acervo da Mercearia Godinho)
Essa história centenária está sendo contada por Silvia Soler Bianchi no livro “Casa Godinho: Um lugar de memória na cidade de São Paulo“, lançado ontem em São Paulo. O projeto é a tese de doutorado de Sílvia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, que também publicou a obra, dentro da coleção “Saberes em Tese”, com curadoria de Benedito Guimarães Aguiar Neto. O livro, que custou 5 anos de pesquisas em órgãos públicos e diversas entrevistas com familiares do imigrante português, teve uma sessão de autógrafos na própria Casa Godinho, que pertence atualmente ao empresário Miguel Romano.
Tombada como patrimônio histórico da cidade, a Casa Godinho é a primeira casa comercial que ganhou o título de patrimônio cultural imaterial de São Paulo e, por isso, foi escolhida como tema das 168 páginas do livro. “Quando você entra na loja tem a sensação de voltar ao passado”, conta Silvia, citando a arquitetura original, com prateleiras de madeira imbuia, e o piso de ladrilho hidráulico português.
Uma das grandes curiosidades do livro foi a história das reuniões espíritas que aconteciam nos fundos da casa comercial. Quem contou foi o neto José Walter Godinho. As reuniões aconteciam depois do expediente e dela participavam vários funcionários e amigos. Prova disso é uma foto da época, encontrada na parede do estabelecimento. A imagem colocada por Godinho foi preservada no local por todos os proprietários e ainda pode ser vista na parede da casa. O motivo da preservação foi o receio de perder a proteção espiritual. Durante o processo, vencer a resistência de familiares e arrancar histórias assim foi um dos grandes desafios encontrados por Silvia. “Aos olhos deles, de historiadora e pesquisadora eu me tornei fofoqueira”, revela.

Godinho numa foto de família, em 25 de janeiro de 1960. Da esquerda para a direita: José Maria Godinho, a nora, Zilah de Lourdes França Godinho; o neto, também José Maria Godinho; e a mulher, Josefa Lusack Godinho.
José Maria foi obrigado a vender a Casa Godinho em 1957 para pagar dívidas com um agiota. Tentou abrir uma loja de móveis, mas não teve muito sucesso. Faleceu em 1961, aos 78 anos.